terça-feira, 30 de maio de 2017

Encontros com Tonacci

Para a Cristina Amaral


Eram finais de Março de 2015, o Andrea Tonacci e a Cristina Amaral chegaram com o Sérgio Alpendre de madrugada ao aeroporto de Lisboa onde os fomos buscar. Depois da habitual espera, os três aparecem e é o Tonacci que repara  no acenar do Zé e chama atenção para o Sérgio olhar na nossa direcção para nos identificar. Logo no primeiro contacto, a delicadeza de Tonacci e a simpatia da sua companheira cativaram-nos. Face ao cansaço patente, visto não terem dormido nada durante a longa jornada, propusemos que descansassem na casa da Marta, pedindo desculpa pelos muitos degraus que teriam de subir para lá chegar. Eles acederam sem reservas e “cochilaram” lá até perto do meio dia. Depois do merecido descanso, ao pequeno almoço a conversa versou sobre o silêncio de Lisboa (!?) em comparação com a cidade de São Paulo e alguns projectos futuros do Tonacci. Estávamos perante um jovem realizador.

O almoço estava marcado para minutos depois na cinemateca e por isso falámos mais do que comemos nessa segunda refeição. Apressadamente dirigimo-nos para o Fundão, com o resto dos convidados e alguns amigos que aproveitaram a boleia entre os quais Manuel Mozos e Vítor Gonçalves. Outro dos encontros mais bonitos deu-se na estação de serviço  a meio da A23, quando Tonacci, Cristina e Vítor entabularam a primeira conversa dando inicio a uma amizade que os levaria na semana seguinte a um passeio junto ao Tejo e a comer pasteis de Belém.

A cova da beira com as serras da Gardunha e da Estrela, assim como o ambiente bucólico da cidade do Fundão, conquistaram desde logo os nossos convidados do Brasil e nem o frio lhes estragou o entusiasmo. Os seus comentários e apreciações ao longo destes dias levavam-nos a olhar as coisas de outra forma, a ouvir e ver mais atentamente.

O bloco Andrea Tonacci estava programado para essa mesma noite e o filme escolhido era o inédito em Portugal Já Visto Jamais Visto que recupera material nunca usado com uma montagem “intemporal” da Cristina Amaral. Lentamente nos é revelada a dimensão intimista e as relações afectivas do realizador, especialmente para com o filho, culminando num dos planos mais bonitos do filme em que o mesmo aparece, ainda pequeno, empunhando uma arma no topo de uma montanha num crepúsculo incendiado.

Bastante surpreendente foi a escolha do filme de acompanhamento, Tatakox – Aldeia Vila Nova, um trabalho de uma tribo de Índios da Amazónia que, com Tonacci, descobriu um novo mundo nas possibilidades de ver registados os seus rituais ancestrais.   

A experiência foi bastante impressionante e até macabra, para nós espetadores protegidos pela cinefilia, visto tratar-se de um olhar virgem sobre uma realidade distante.

Pena que nesta ocasião não houvesse oportunidade para ver todos os filmes de Tonacci, principalmente os que testemunham a forte relação com os Indígenas. A luta pelos seus direitos levou-o literalmente a viver na selva com eles partilhando as suas dificuldades e colocando a sua própria vida em risco nessa demanda. Tonacci chegou a eles humilde e foi aceite como um dos seus.

A complexidade dos seus filmes neste contexto, expondo tanto as forças e grandezas como as vulnerabilidades e misérias destas comunidades, sem julgamentos nem santificações, é também uma imagem deste homem cuja personalidade revela mais a humanidade de um olhar que a militância de uma causa. Longe de qualquer antropologia forçada, a sua condição talvez corresponda mais às constantes deambulações de Carapirú no Serras da Desordem. Alguém sempre à procura de relações de pertença e de identidade mas com um sentimento permanente de insatisfação e uma sede de liberdade sem amarras.

Inesquecíveis para todos, foram as histórias que ele contou da convivência com os índios que parece ter sido tão importante para a sua visão das coisas. O apuramento dos sentidos necessário para a sobrevivência na selva culminou em êxtases místicos, praticamente alucinogénios, onde, na suspensão de uma cama de rede e perdido o chão, vislumbrou, no céu estrelado, uma paleta de sons e perspetivas densas de perdição no coração das trevas.

Após a vivência de algum tempo na selva o regresso a São Paulo era sempre difícil e a imagem que nos deu de uma parede branca olhada depois dessa experiência, descortinava uma data de tons e detalhes nessa superfície que no quotidiano de uma cidade passa completamente despercebida.

À saída da sala, e depois de se ter falado da incursão do Tonacci nas reservas índias nos Estados Unidos, onde John Ford imprimiu a sua lenda, o Zé falou-lhe de um sonho antigo de percorrer esse território, mas que ainda lhe faltava coragem, ao que Tonacci, de um modo firme e quase severo, respondeu que, muitas vezes, é preciso sermos irresponsáveis para cumprirmos os nossos objetivos.

Vivida a saga do Fundão, o casal planeava um ida ao Porto em parte motivada pela possibilidade de reencontrar Manoel de Oliveira, mas dado o estado de saúde do cineasta português, ficaram-se pelo passeio.

Uns dias depois voltámos a estar com eles na Cinemateca Portuguesa, onde fomos conduzidos pelos interiores neo-arabes do edifício numa visita guiada e acompanhada por José Manuel Costa. Nessa noite iniciou-se um pequeno ciclo que incluía os filmes já referidos sobre os Índios, entre outros da sua dispersa mas intensa filmografia.

No dia seguinte, a Cristina e o Tonacci voltaram a subir os quatro andares da casa da Marta para um almoço quase familiar a que se juntaram, entre outros, o Bruno e a irmã da Marta que muito conversou com a Cristina sobre educação e ensino dos dois países irmãos.

Nas conversas que iam e vinham entre a sala de estar e a cozinha alguém afirma que fazer um “filme a sério” é bem mais complicado do que aquilo que se supõe, visto que há que construir um argumento, filmar, montar, fazer a banda-sonora, limar as arestas, etc., etc. Ao que Tonacci, sempre disposto a ensinar como a aprender, a falar como a escutar, sugere que pode não ser bem assim, que tudo nasce organicamente do envolvimento afectivo e emocional com as pessoas e as coisas, inclusive a feitura de um filme... ou seja, das salas escuras para a luminosidade Lisboeta, é a repetição da leitura de O Desprezo de Alberto Moravia em Já Visto Jamais Visto, que só nos diz que há mil maneiras de fazer um filme como há mil maneiras de viver.

Aproveitando um momento mais intimista nessa tarde depois do almoço, o Zé mostrou-lhes os vídeos musicais que temos feito, e o Tonacci expressando o seu agrado por o que apelidou de “filmes de amor” aconselhou a não ter receio de tentar o grande plano, filmar o rosto mais de perto.

Nessa altura, cada encontro com eles já tinha o sabor de uma longa amizade, como se já nos conhecêssemos há muito mas ainda tivéssemos toda a vida a nossa frente. E era sempre o Tonacci que nos reavivava esse sentimento com uma data de planos para voltar a Portugal, para trabalhar naquele projecto de pesquisa sobre os índios europeus. Chegou mesmo a encontrar-se com historiadores e deve ter conhecido todos os alfarrabistas de Lisboa para arranjar bibliografia... os “sebos” lisboetas ganharam fama entre os amigos brasileiros. O Sérgio Alpendre cada vez que cá vem, deve livrar-se de roupa para poder levar livros.

Despedimo-nos com a promessa do regresso deles ou de uma ida nossa ao Brasil, mas com a possibilidade de ainda nos vermos no dia seguinte, pois eles voltariam à Cinemateca para mais pesquisa  antes da partida. E como foi precioso termos lá voltado para a derradeira despedida!!

«Sempre apareceram» - disse o Tonacci com aquele sorriso de criança, quando nos viu.

E seguimos com eles para a baixa para mais uma incursão “alfarrabistica” deles e nós na direcção do concerto da Marta em que o “Acaso” se ia estrear. Parámos no S. Jorge para um café na esplanada e foi aí, com o vento nas árvores da avenida, que a Marta lhes cantou o Espelho Quebrado:

Com o seu chicote o vento, quebra o espelho do lago
em mim foi mais violento, o estrago
porque o vento ao passar murmurava o teu nome 
depois de o murmurar deixou-me (...)

«Pena não termos gravado este momento» lamentou a Cristina a Tonacci depois de tudo terem escutado com a máxima atenção, concluindo rapidamente que foi bom não terem utilizado a câmara pois assim levariam tudo no coração. Já na avenida, antes dos beijos e abraços ficou no ar o seu regresso para continuarem as pesquisas, e a promessa de que os ajudaríamos a encontrar uma casa quando decidissem voltar.

Chegados a esta edição dos Encontros em que veremos Olho por Olho, Blábláblá e Bang Bang, filmes de inicio de carreira onde irrompe uma tal violência aleatória e irracional e comparando com  a doçura e a serenidade deste príncipe de modos simples e naturais que tivemos o privilégio de conhecer há dois anos, supomos que tenha talvez sido o tempo, a vida e a sede de conhecimento e de aproximação ao outro que conjugou tudo isso. A marca da sua calma, coragem e pulsão de vida simultaneamente será indelével em nós. Obrigado Tonacci.


Marta Ramos e José Oliveira
Maio 2017

[*texto publicado originalmente no Jornal dos Encontros Cinematográficos 2017]


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