quarta-feira, 16 de setembro de 2015


They were all like runners, runners with enormous feet. They were dependent upon their feet to run. But those same feet were always tangling them up and tripping them. And if they ever did win a race, it was both because of their feet and in spite of them.
But none of them knew this. All they knew was that they loved their big feet, for making them different, while they hated them bitterly for making them conspicuous. Such children. 

James Jones
SCR

terça-feira, 15 de setembro de 2015


Gosto muito de Mathieu Amalric. Como realizador, actor, nas entrevistas, postura, e aposto que é um tipo porreiro. Gosto muito dele nos altos e posso continuar a gostar mesmo nos falhanços. Arrisca, procura fazer e ver coisas num ângulo não tão óbvio, noutras ocasiões é absolutamente simples e claro, tão terno e amigo como fugidio, prestes a sumir-se num piscar de olhos ou o suporte que sabemos encontrar no sitio do costume e na hora do costume. Dá para falar densamente dos filmes que fez com Jean-Claude Biette ou André Téchiné, mas o que dele prefiro por agora e para muito tempo é "Tournée", uma dessas suas espaçadas realizações onde também é o protagonista. Clássico e claro, para seguir esse homem cheio de defeitos e virtudes, contradições e certezas, ofegante e vivo, inspirado nas míticas figuras de Humbert Balsan e de Paulo Branco, em comovente périplo para não abandonar à sorte as suas meninas de espectáculos inclassificáveis e belos por assim ousarem. Ou seja, simples, clássico, claro, e raro, muito raro, pois como todas as obras que se enchem de humildade para seguir assim um corpo e uma alma em consumição nobre são nada menos do que únicas. E sobre elas podem-se escrever milhares de páginas ou somente oferecer as lágrimas ao escuro e à solidão. Mas por agora a cena mais sublime deste projéctil silencioso, sublime não da forma divina a essa experiência sempre associada, sim o sublime largado ou nascente do aparentemente corriqueiro: a cena em que o corredor abastece numa estação de serviço e tem uma relação com a menina da caixa. Relação fugaz, absoluta, dois ou três minutos a valerem por uma vida inteira lado a lado. Não dizem um ao outro nada de jeito... ele diz que vai ver os filhos... matar alguém... fuma e guarda o telefone em infracção, esbugalha os grandes olhos aparvalhados; ela diz-lhe a que horas vai largar o trabalho... diz-lhe ainda que o namorado a vem buscar... o que vão fazer juntos... e da pena de não o poder conhecer melhor. Mas nesses sorrisos, corares, patetices e muitas verdades como quem não quer a coisa, estão núpcias, luas-de-mel, discussões, momentos perfeitos, filhos e viagens aos confins do planeta. Muito amor, platonismo, vias de facto, e etc., com ela e ele a transpiraram e tudo, com ela a compor o cabelo e novos cigarros preparados para o fogo. O vidro que os separou ou o "boa-noite" seco e engasgado só os aproximou adentro. Passou-se tudo o que interessa, inclusive um grande-plano que dura e dura e dura, dela, alguém que não mais irá aparecer na história, para aparecer com certeza muitas vezes na cabeça e sonhos dele. O sublime à primeira vista invisível porque presente no singelo, no dia-a-dia, entre a padaria e o jardim de família, a revelar-se nas frequências muito baixas ou nos tempos mortos. E Amalric junto a um Manuel Mozos, um Jorge Silva Melo ou um Robert Mulligun, um Xavier ou The Pursuit of Happiness, os namorados a correrem e a câmara com eles sintonizada. Um passo, outro passo, um olhar, um suspiro, cada qual podendo ser o centro e a diegese da empreitada. Muito de mansinho, sublime.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015



"Uncertain Glory", que Raoul Walsh não teve medo de ousar na estação mais quente do século passado é do mesmo betão ou metal indissolúvel do primeiro André De Toth desse ano, "None Shall Escape", ou do Fritz Lang de "Ministry of Fear" e dos seus imediatamente anteriores - 1944, a elevação e força da moral e dos olhos nos olhos - como nos planos iniciais da guilhotina - em vingança e justiça férrea. O percurso, a mente e os valores da personagem de Errol Flynn vão em derrapanço e aflição até ao momento em que pela primeira vez olha para uma mulher sem o intuito da pura carne; como uma doença ou um inexplicável fenómeno sobeja a paixão, a alma abala, e vem à luz um novo ser, entre choros e risos. E Walsh, lado a lado com Flyyn, num só, não lançam sinais óbvios, não escancaram isso, tudo complexificam em nome da perdição que significa ou significará a conjugação de tais partes - guerra, nascimento, alegria, fim. E de um momento para o outro, sem ninguém pedir nada ou esperar nada, o condenado e a inocente do fim do mundo descobrem-se aprisionados e vergados um no outro, órfãos Griffithianos com a presença no mundo ameaçada por algo que os transcende, encravados no ar do tempo e nos desejos eternos. Ela entrega-se a ele inteira e sem fazer perguntas, aceitando tudo; ele, o ladrão, criminoso e mulherengo, vendo um rosto daqueles desprotegido, esquartejado pelas velas funestas, insuportáveis, menina que não pode cantar na idade de cantar, morre não por cem ou pela humanidade inteira, mas por si; isto é, para que o Ser humano ainda faça sentido. Para lá do patriotismo ou da penitência codificada, a compulsão animalesca da verdade e dos seus fundos sem volta a dar, i.e., dos sentimentos. Podem-se ter mil cursos ou discursos arquitectados detalhadamente, em campanhas políticas inteligentes ou no campo deserto dos cegos, que todos eles, em data e lugar impronunciáveis, se vergarão perante a derradeira revelação. Brevemente. Interminável ápice.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015


William A. Wellman também realizou a mais bela missa da história do cinema, missa branca e a tudo aberta, em território desconhecido e em guerra; claro está, "Battleground", de 1949. Ambidestro e na neve que não cessa e assim lhe proporciona fragosos desportos de inverno, esse fabuloso padre vai passar isso para os soldados que vieram até ele, numa generosidade e violência que vai ascendendo até a uma libertação possível que termina na marcha final e se estendeu sempre pelas formas cerradas e impassíveis, corajosas, da câmara. "Esta viagem foi necessária?" é a única pergunta e sermão que entrega aos filhos, irmãos, indo divagar pelas super-raças e super-poderes para se tornar óbvio que todo o fogo de posse absoluta e cega tem de ser apagado antes que se espalhe. E que sim, no pesadelo de milhões de mortos, sim, a viagem foi necessária. Seguidamente, rezam o que podem, e regressam às bombas. Mas o que esse fabuloso e generoso Padre não diz boca fora, embora não tenha vociferado outra coisa, tem que ver com esse escândalo que se passa entre o natal, pelas árvores magnânimas e na alvura mais fina: se homens feitos da mesma matéria-prima e sempre tão semelhantes ousam fulminar-se frente a frente, se isso se torna rotina gélida, sem nome ou designação, e pior, se um tipo de honestidade vem ao de cima que não é possível em tempos e espaços de paz podre, então tudo isso é mesmo necessário para se saber do nível de inocência e culpa que a raça pode baralhar, para se saber do nível de maquinação que o poder, qualquer poder sem Homens e com Ideias, consegue perpetrar à beleza dessa natureza que parece chorar pela beleza dos homens. Nessa sequência composta e coreografada segundo o mais velho sagrado atinge-se a plenitude da comunhão, nessa gravidade serena todos estão iguais, juntos, unidos. Envoltos, emplacados e escancarados nessa pressão da atmosfera surgem com a mais irrefutável precisão todos os rostos da tragédia, sem legendagem ou tinta-da-china mas perfeitamente reconhecíveis, nazismo ou jornalismo ou coisas bem mais subterrâneas. Em "Battleground", a pura abstracção só revela a pura perdição, e na dor infinita, é um filme belo, partindo dessa mais bela missa do cinema: nem redenção, nem perdão fácil, antes da nossa imprevisibilidade e consciência, existência. Daqui à nostalgia soturna, lunar e unificadora de "Good-bye, My Lady", fôlego crepuscular, deve ter a ver com os regressos a casa de todos, algures.

terça-feira, 8 de setembro de 2015


"The Homesman" começou por ser mostrado no festival de Cannes de 2014, só que, pouca sorte, no meio de tanta "obra-prima" ninguém lhe passou cartão. As razões da crítica foram as usuais porque fáceis: o género western já morreu à muito... nem sequer se ousou o pós-western, a pós-modernidade ou coisa que valha... sem transe de corpos ou experimento narrativo... política só no subtexto e mesmo assim é preciso forçar muito... já não se pode fazer este tipo de cinema anacrónico e até reaccionário. Foi o James Gray desse ano. Tommy Lee Jones, o mau da fita, lá tentou dizer na conferência de imprensa que não pensou um segundo nesses engavetamentos, nem em cinefilia ou regras... ficando-se por umas fotografias, uns livros de História, relações humanas e as condições meteorológicas sentidas no capado. O resto, tentar filmar e montar o melhor possível, quer dizer, à altura... Disse ele e disse a bela forte Hilary Swank, chamada por Lee Jones anjo aquando da primeira salvação, já no filme.

Belíssimo filme, carregado de nuances e desenvolvimento puramente humano. E até poderia não ter sido: há que dizer que por vezes a saturação das cores e esses estouros vilipendiados pelas mais sofisticadas máquinas de tratamento de imagem se impõe; a música tende a embalar o que seria mais certo silencioso e árduo; enfim, a imagética das loucas que serão conduzidas América fora apresenta-se demasiado batida e presa a referências new age duvidosas. Só que, quem viu Lee Jones noutros filmes - "In the Valley of Elah", para não recuar muito - ou a sua anterior realização, percebe que pode haver passos estéticos e técnicos em falso que éticos nunca os haverão. As personagens ganham a parada, mudam, aprendem e transformam-se, vibram e a dramaturgia vibra. Lee Jones é George Briggs, que começa por ser um fraco, mesmo repugnante, cobarde, excremento a limpar daquelas idílicas paisagens tão manchadas pela nossa razão. Hilary Swank chama-se Mary Bee Cuddy, rosto seco e marcado como uma ameixa, mandona que assusta os machos, muito religiosa e sã. Depois, depois vem a travessia e as revelações a partir desse mundo novo que são eles todos juntos. E a riqueza a que vamos ter o privilégio de presenciar: Briggs, o cobarde e fraco, talvez seja assim pois nunca conseguiu saber o significado do amor e a culpa poderá não ser dele, e não querendo nada além do habitual todas as mulheres da caravana, de diversas maneiras, vão ter com ele. Mary, imersa e submersa em tanta limpeza, esteve sempre mais ao lado da solidão do que ao lado de seres de carne e osso, e já não se domina nem à tal da compostura, força o que não deve ser forçado e não aguenta. Certas almas, em insólitos destes começam a perceber o que sempre lhes faltou e, sem quererem, aproximam-se repentinamente das próximas, ou seja, perigosamente. Umas aguentam certas revelações e vislumbres fundos, outras não. Tal como loucura e sanidade cravam entre si amarras e garras para sempre. Mary tomba depois de ter clamado o seu anjo da guarda, Briggs fica a pensar no reservado destino da perdição, mas nesse encontro e nessa fusão algo grave tremeu e revirou. Dessa chaga ou dessa fonte brotou ferozmente a justiça e daí até ao fabuloso grito final dele - "We are headed West, Goddamn it!, If it hairlips the goddamn devil" - despoletou o universo salvador, irracional e animalesco do amor, tema de qualquer obra que importa.

No que será o melhor texto sobre o filme, Carlos Mello Ferreira escreveu: "Fora do seu tempo, de qualquer tempo, "Uma Dívida de Honra" é um western que nos leva ao coração do ser humano, preso por liames, que se transformam em grossas cordas, aos outros e ao que o rodeia, sem embargo do que ele tem que se desenvencilhar sozinho." Amor, solidão, morte, sem ordem. São estes trilhos que se percorrem verdadeiramente em "The Homesman", sabendo do absoluto de se ser dois e do absoluto de cada um ir aos limites da sua busca, de se desenvencilhar. A solidão, nos tempos dos cavalos ou no tempo da globalização e do digital nunca nos abandonou, está lá sempre, mesmo nos fogos-de-artifício. Olhando-se o deserto sem lei nem fim como Mary olhou ou os desertos no ecrã de alta resolução que também tremem, persiste a bela atitude deste anacronismo urgente: a evolução e a revolução estarão sempre no interior e no íntimo, jamais nos brilhos das revistas e do espectáculo anedótico. Dança-se, dá-se tiros, chora-se. E é o maior acto político alguma vez cometido.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015


A odisseia de "Westward the Women" é um círculo total e completo, está ao lado da de Abraão ou da de "Red River", numa extensão desconhecida, sem lembrança, antes das civilizações, homens e marcações. O fogo nos seus vários desígnios e temperaturas, a água e o ar, a pedra e o pó, o horizonte longínquo e infinito e o chão fatal. De tudo comporta esta explosão, travessia, conhecimento. Um western, no seu tempo e no seu espaço de excelência, mas toda esta resolução que consiste em levar mulheres para um verde vale de homens, atravessar nesse perneio todas as provações vistas e as novas, criar algo, reconhecer, aceitar ou forçar, comporta a física e a metafísica que nos trouxe ao mundo e nele nos fez estar. O estouro cosmológico do desenvolvimento inicial do universo, a nascença dos seres e das coisas, a junção e o duelo - explosão, travessia, conhecimento: os três actos de onde os argumentistas procederam. Que seja William A. Wellman a tomar as rédeas é fundamental, pois como disse Peter Von Bagh, ele foi provavelmente o mais imprevisível dos realizadores deste tempo. De Frank Capra, o fantasista - embora o seu real irrompa tão cru e dolente... - para o temperamental e avisado homem de Massachusetts. Se estamos na presença - puramente na presença, sem filtros de protecção - das coisas, numa das obras mais descarnadas e desenfeitadas alguma vez levadas a cabo, o nexo, o sentido e o sentimento continua a ser absoluto: pela crosta em primeiro grau, pela distância e peso perfeitamente delineados chega-se também à ascese e ao lírico, sopra-se alegoricamente e sussurrante. A amada de Robert Taylor a chamuscar contra os céus, eles envoltos em vento, tudo estacado e a tremer; a cavalgada do mesmo Taylor para a cavalgada dela, a velocidade impossível, escarpas e água em coro, rochas com olhos como a que brotou águas na bíblia, electricidade sem amparo, opostos e vulcões furiosos unidos: só o King Vidor de "Duel in the Sun" por aí rondou, maternidade em cena e nos rostos, dilúvios incompreensíveis; ossos, campas e cadáveres nas árvores em vigilância, espelho das caravanas em transladação. O esforço incomensurável dos homens, finalmente Deuses terrestres em acção; e o Cinema em esforço tão incomensurável como, a participar da rotação e da pressão que nos sustenta. Certas vezes houve união e as coisas valeram por uma ordem da verdade reconhecida sem lições. A terra da felicidade é um lugar de luta e de comunhão. Wellman atingiu aqui o auge, o justo e o que desimporta isso pois o frente a frente derradeiro possui a disposição do tal duelo e destrói-o pelo patético da inocência. Grandioso e minúsculo como o primeiro e o último plano. Carne viva, ascese, lírico, dureza e ternura, em corpo e tempo indeciso e indefinido, 1851, 1951 ou agora mesmo, no citadino dia de trabalho massacrante ou nesses refugiados expulsos sem rei nem roque. Todas e quaisquer histórias.

sábado, 5 de setembro de 2015



Para alguns, certas obras haveriam de arder nas caldeiras cegas do inferno que só fazia bem à sanidade humana. Mas certo é que qualquer retrato preciso e imbuído nas superfícies e nas teias do que trata só pode ser indispensável. "Woman on the Run", da leva tardia dos noirs e dirigido pelo vivido Norman Foster, chegou efectivamente a pegar fogo nalgumas dessas chamas. Só que certos homens sabidos - no caso, Eddie Muller - deixaram os receios de lado e foram até ao fim para salvar algo que só mostra homens e mulheres na procura de qualquer coisa próxima à salvação, a lutarem contra a força da natureza de cada um, de onde a patologia ou o trauma é rótulo redutor. O resumo é simples: o tipo que passeava o cão à noite calhou de ver e ouvir o que não devia e passa a ser a presa acossada. Para se tornar irresumível: quem o quis logo despachar confundiu-o com a sombra, matou a sombra, daí, o tal tipo tem de volver-se sombra a negro sangrada. Seguidamente, no tempo em que a luz presta as contas a quem de direito, vamos saber da esposa dele, da relação estranha, conturbada e aflorada; saberemos ainda que ele não precisou do tal evento extraordinário que lançou a narrativa e o cinema pois sempre foi um perdido no mundo cósmico e no mundo dos adultos. A mulher vai correndo e envolvendo-se com o que deve e não deve, o fugitivo vai deixando pistas soturnas e esventradas como cartas de amor, o turbilhão faz-se ciclónico e apocalíptico. Tudo desemboca numa feira popular, pela montanha russa e entre deformações, palhaços, ventríloquos e monstros outros que não espreitam de lado algum a não ser das entranhas negras da nossa inconsciência e medo, por aí onde ainda não se nasceu ou morreu, num sono profundo ou grito de desespero mudo pelas esquinas da via láctea consumida. Então, no auge paroxístico da imagem e do movimento aflitivo do desespero da consumição, esse homem e essa mulher encontram-se - para além ou aquém do reencontro - e pode ser que se trate de um nascimento. Agrura, crueza, realismo sem corrente, distorção sem Orson Welles, paixão sem freios numa modelação trabalhada pelo ar da noite. O milagre que foi ter-se achado este filme tem a ver com radiografias claras e oblações íntimas, o que nos é dado a entender e o que se tem de resguardar sacramente. O que importa.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015


O maior acontecimento artístico da temporada não se encontra numa sala de cinema - a não ser que se fale da retrospectiva Jacques Tati, mas esse já entrou nos reinos do céu - mas sim numa pequena sala da Fundação Calouste Gulbenkian, encravada entre os bengaleiros e os WC e esse auditório despovoado de importância. "António Cruz 1907-1983" assim se chama a exposição dedicada a este grande Pintor romântico, intempestivo, preciso e inclassificável que atravessou silenciosamente o século XX Português para deixar a sua indelével marca na eternidade. Invisível durante tempo demais, em parte por a sua obra estar quase toda na posse de coleccionadores privados, mas também pelo rótulo Portuense e individualista, fica-se agora imediatamente a saber da injustiça do esquecimento. Primeiro, a abrangência dos locais em que se moveu e plantou é enorme e diversificada, centrando-se naturalmente no Porto para sair e confluir por Braga e arredores, até Paris e espaços sem mapa e sem tempo. A luz coada a negros, cinzentos e turvos complexos e personalizados da sua cidade, miragens por aqui e por nenhures, uma pequena mancha de azul que cria a sensação e o corpo de um monumento, um encarnado incendiário que magnifica e vocifera um rosto ou o rosto, fantasmagorias no baço primeiro plano e corporeidade total na profundidade de campo, pontes e comboios ténues e esvoaçantes que testemunham humildemente e fantasticamente a nossa capacidade, a espuma e o fulgor do correr dos dias. Numa paleta ultra sensível, delicadíssima, e com a força catártica das revelações e das visões virgens, talvez no nosso caso só uma obra rime com esta na nossa história - "O Pintor e a Cidade", de Manoel de Oliveira, em que António Cruz é protagonista nada acidental. Esse filme sublime e também diáfano de outro homem do Mundo, onde a luz e a massa se penetra e interpenetra em relação visceral e fina, com o seu coro angelical, a gama de tons serenamente chamejantes como a de António Cruz, o movimento contemplativo e de efemeridade acatada, conversa na paz dos anjos com os dois actores: o pintor e a cidade.

O que estas aguarelas, como a película assim exposta, traçam e escancaram, é que esta arte e este trabalho da sugestão é deste modo igualmente o mais realista, matéria finalizada dos sonhos, monstros que se despertam e erguem da banalização do quotidiano. Quando nos dizem, nos impõe e nos querem fazer ver que tudo é só uma coisa e assim tem de se manter - os políticos da actualidade ou os costumes e mitos velhacos - só estas grandes mãos, estes grandes olhos e esta fibra de genuínos artistas para nos acordar e transportar para o âmago das coisas, de todas as coisas e seres. Seja Vincente Minnelli numa terrinha dita pacóvia na América dos pequeninos, as matizes da pena do Açoriano Dias de Melo, uma catedral de Prokofiev, o poeta urbano que morrerá só, importa as almas e rumores em expansão, puramente. "António Cruz 1907-1983" está escondida até 18 de Outubro, condenada ou merecida a "happy fews", e urge sair dessa situação para que felicidade e justiça ganhem novos significados. É passar a palavra, ver cada um pelos próprios olhos e coração, enriquecer.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015



"Rua com o cão" tanto pode servir para expulsar de casa o vizinho fino como um rato, morto por meter a sua colherada e mandar mais do que os donos da casa, como para expulsar pregadores modernos com bíblias modernas ou cartões de débito milagreiros. Tanto dá para evitar o "correio da manhã" personificado que espalhará a fresca noticia pela freguesia mais rápido do que o padre, ou meter no lugar o advogado que ainda à oito dias era trolha. O cão será toda a trampa que cheira mal ao humilde e a rua a morada pedregosa aconselhada a bem ou a murro.

Na inacreditável safra que Raoul Walsh iniciou nos convulsos cinquenta até chegar à fase final que de acalmia só tem o sobreaviso de quem viu e provou das guerras e das fomes, de todas as raças e personalidades, percebendo que no final de tanto caminho é tudo uma e a mesma coisa conforme a terra habitada ou queimada, a temperatura e o que resta ou não resta de vida, "The Lawless Breed" traça-se num circulo entre a urgência e a imensidão dos tempos inexplorados. John Wesley Hardin, por Rock Hudson do rosto de leite até às chagas indisfarçáveis, é o homem que pediu que lhe imprimissem a sua história pela própria pena, e pertence aos da estirpe que agindo ou estagnando criam os mitos mais imperscrutáveis. Esse maduro que começa por sair da prisão entrega-nos em palavras uma deriva e obstinação que Walsh enforma frontal, sem qualquer tipo de digressão, para assim sermos testemunhas e ficarmos instante a instante na dúvida e na certeza. Na dúvida: John Wesley Hardin detesta armas mas não as larga; não pensa matar e não puxa em primeiro lugar mas está sempre no centro e na hora exacta da transgressão; vende os livros da lei para existir livre e por si mas no jogo desmultiplica as cartas como por magia. Na certeza: a sua demanda, a sua resolução, nunca é traída pelos meros receios ou imponderáveis superiores a nós, e quando sabe que o que deve fazer só pode estar certo, nada de qualquer reino alto ou baixo tem o poder de remoção. Todo o trabalho de contemplação em Walsh encontra equivalente e parentesco no rosto em modelação de Hudson, portador das mágoas e da dúvida que assiste a quem pensa na função humana em vida e em morte, ora inocentemente feliz com a menina da infância e depois lutando com a explosiva mulher espelho dele, ora aflito e gritando mudo para as suas entranhas que nada fez para penar. E assim, desde que manda o cão contraditório do Pai pregador para a rua e se entrega aos abismos do desconhecido, terá de provar resolutamente a si mesmo que não tem medo, suprema autonomia e utopia que pode resvalar para todas as transgressões indesculpáveis - ditaduras humanas, económicas, cobardes. Só que o social em Walsh é sempre subtil, não gritado, entrevisto no andar ou no respirar de um individuo, e por isso paroxístico. John Wesley Hardin só quer um lar, verde e com água por de volta, paraíso a qualquer um acenado, e o seu rosto começa de facto a revelar que é só isso mesmo. A cena do tribunal é contundente, o organismo do rosto prova que a sociedade e os seus mecanismos estão longe de serem científicos, de impossível ajuste ao singular e à emoção sem legislação.

"Los hombres son dioses muertos / De un templo ya derrumbado / Ni sus sueños se salvaron / Solo una sombra que va" na constelação desconhecida, soturna e brilhante da voz de Mercedes Sosa. A claridade ventosa de um tiroteio anunciador e a escuridão absoluta que esconde as chagas quando falece a menina dos sonhos. No final vemos o Pai, o filho e a Mãe a só quererem a casa, e ficamos a perceber nem que seja só um bocadinho que a flor anónima que cresceu no deserto e secou e o herói épico conheceram-se; errância e justeza passaram no mesmo caminho; uma sombra derradeira contendo todos os abalos, amor e morte. A entrega total, eis do que nos fala este filme e Walsh, tão pateticamente como um melodrama perfeito e tão limpo como John Ford. Disse um dia Jorge Silva Melo sobre ele: "o Mestre a filmar a vida dos homens sem Deus, sem moral e sem sentença". A eterna violência da procura com o destino.